por Leandro Müller
Queridíssimo
Lerme
Você é apenas um bebê e ainda vai levar
alguns anos até que alcance o entendimento das coisas que tratarei aqui, mas
como seu tio e padrinho, quando recebi o convite para escrever um pouco sobre
Rubem Fonseca, foi em você que pensei para explicar as razões do porquê
conhecer a obra desse escritor.
Com o passar dos anos, você perceberá
que não faltarão pessoas te dizendo para ler, e indicando o que ler (geralmente
tentando obrigá-lo). Contudo, a maioria não te convencerá. Eu mesmo passei
incólume pelos livros até o início da vida adulta. Só mais tarde me dei conta de
que a literatura não está só nos livros, ela se esconde nas estórias, pode ser
um filme, uma série, um jogo, uma música. Ela nasceu na tradição oral e foi se
adaptando, se apropriando dos suportes que a tecnologia inventava. Por isso,
Lerme, gostaria que você soubesse que ler nada mais é que escutar uma
narrativa.
Entre esses que contam estórias
(fictícias ou reais), devemos escutar a dois tipos de pessoas: as que têm
paixão por seu tema (e falam sobre ele com entusiasmo) e aquelas que sabem do
que estão falando, que conhecem o assunto sobre o qual discorrem, ou que ao
menos acreditam verdadeiramente conhecê-lo. Rubem Fonseca pertence
simultaneamente a essas duas categorias.
Seu notório conhecimento sobre os temas
a que se dedica fica evidente em um conto, ou quase novela, chamado Romance
Negro, onde faz citações de inúmeros escritores habilidosos, entremeados por
uma verdadeira aula de história do gênero policial. Somos convidados a um jogo
de adivinhação enquanto aprendemos a distinguir as diferenças entre a escola
americana e a escola inglesa de tal literatura “obscura”. Um prato cheio para
quem gosta de aprender com quem sabe, como eu.
Os
especialistas na obra deste escritor irão apontar várias virtudes em seus
textos (e até alguns defeitos, dependendo de quem for o crítico). Mas não é por
causa do que eles dizem que você deve ler, e sim pelo próprio autor, porque ele
é capaz de capturar exatamente o que sentimos. Por exemplo, veja esse trecho do
conto O Cobrador, que parece ser o predileto da maioria e que está presente
obrigatoriamente em tudo que se diz sobre o Fonseca: “A rua cheia de gente. Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para
fora, está todo mundo me devendo! Estão me devendo comida, buceta, cobertor,
sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo.(...) Tão me devendo
colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no
botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol. (...) Estão me
devendo xarope, meia, cinema, filé mignon e buceta...” Espero que nunca aconteça
para você o dia em que achará que a
sociedade lhe deve, e que chegou a hora de cobrar. E espero que não se utilize jamais
das mesmas vias que o personagem deste conto.
Agora vou lhe contar como esse autor
realmente me arrebatou. Foi numa tarde comum, no meio de uma semana ordinária,
nos meus saudosos dias de livreiro, que o leitor Rubem Fonseca entrou na
livraria e me pediu que lhe indicasse a seção de poesia, para onde o conduzi.
Um tempo depois, já novamente imerso nas atividades da lida cotidiana, senti
que ele me tocava calmamente o ombro, com um sorriso de menino, chamando-me a
atenção para os livros que levava: poetas ingleses românticos. Foi ali que me
dei conta de algo maior, que me revelou a verdadeira razão para se ler aquele
escritor...
Você gosta de segredos, Lerme? Então, preste
atenção, porque este pouca gente conhece: apesar de o definirem como pai do romance
policial no Brasil, na verdade, Rubem Fonseca é um poeta. Um poeta apaixonado.
Não sei disso simplesmente pelo sem número de vezes que poetas e poemas se
escondem sutilmente em suas obras, como Baudelaire* e Camões**, mas pela forma
como desenvolve temas propriamente poéticos, como o fascínio pelos ossos
ressaltados das mulheres, que só um poeta consegue admirar e que ele deixa à
vista nos contos Mandrake, O corcunda e a Vênus e no já mencionado Romance
Negro. O fascínio é um sentimento lindo e raro (muitas vezes confundido com a
obsessão, mas sobre isso conversamos em outra ocasião), principalmente neste
mundo em que rapidamente nos acostumamos a tudo. Nunca devemos perder a
capacidade de nos pasmar!
Foram essas circunstâncias, Lerme, que
me levaram a gostar do Rubem Fonseca. Espero que elas sirvam de guia para que
você encontre suas próprias razões para também apreciá-lo, e a outros autores
que venham a ser seus favoritos.
Notas:
Comece por este aqui: 64 contos, Rubem Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, mas
não deixe também de ler os romances Bufo & Spallanzani e Diário de um
Fescenino.
Notas:
*O
Baudelaire escondido:
“(...)
vendo-a distanciar-se agile e noble, avec as jambe de statue, até que ela
desapareceu no meio da multidão.” (Mandrake. p.309.)
BAUDELAIRE,
Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira.
Edição biligue. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
XCIII
A
une passante
La
rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d'une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l'ourlet;
Agile
et noble, avec sa jambe de statue.
Moi,
je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan,
La
douceur qui fascine et le plaisir qui tue.
Un éclair... puis la nuit! - Fugitive beauté
Dont le regard m'a fait soudainement renaître,
Ne
te verrai-je plus que dans l'éternité?
Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! jamais
peut-être!
Car
j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
O
toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais!
|
XCIII
A
uma passante
A
rua em torno era um frenético alarido.
Toda
de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma
mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo
e sacudindo a barra do vestido.
Pernas
de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual
bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No
olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A
doçura que envolve e o prazer que assassina.
Que
luz... e a noite após! – Efêmera beldade
Cujos
olhos me fazem nascer outra vez,
Não
mais hei de te ver senão na eternidade?
Longe
daqui! tarde demais! "nunca" talvez!
Pois
de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu
que eu teria amado, ó tu que bem o viste!
|
**O
Camões escondido:
“Isso
aqui: transforma-se o amador na coisa amada, por virtude de muito imaginar...
que mais deseja o corpo alcançar? Que diabo o poeta quer dizer com isso?” (O
corcunda e a Vênus de Botticelli. p.720.)
Luís
de Camões
Transforma-se
o amador na cousa amada,
por
virtude do muito imaginar;
não
tenho logo mais que desejar,
pois
em mim tenho a parte desejada.
Se
nela está minha alma transformada,
que
mais deseja o corpo de alcançar?
Em
si somente pode descansar,
pois
consigo tal alma está liada.
Mas
esta linda e pura semidéia,
que,
como o acidente em seu sujeito,
assim
co’a alma minha se conforma,
está
no pensamento como idéia;
[e]
o vivo e puro amor de que sou feito,
como
matéria simples busca a forma.