Menu

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Rubem Fonseca e o poeta

por Leandro Müller  



Queridíssimo Lerme

Você é apenas um bebê e ainda vai levar alguns anos até que alcance o entendimento das coisas que tratarei aqui, mas como seu tio e padrinho, quando recebi o convite para escrever um pouco sobre Rubem Fonseca, foi em você que pensei para explicar as razões do porquê conhecer a obra desse escritor.

Com o passar dos anos, você perceberá que não faltarão pessoas te dizendo para ler, e indicando o que ler (geralmente tentando obrigá-lo). Contudo, a maioria não te convencerá. Eu mesmo passei incólume pelos livros até o início da vida adulta. Só mais tarde me dei conta de que a literatura não está só nos livros, ela se esconde nas estórias, pode ser um filme, uma série, um jogo, uma música. Ela nasceu na tradição oral e foi se adaptando, se apropriando dos suportes que a tecnologia inventava. Por isso, Lerme, gostaria que você soubesse que ler nada mais é que escutar uma narrativa.

Entre esses que contam estórias (fictícias ou reais), devemos escutar a dois tipos de pessoas: as que têm paixão por seu tema (e falam sobre ele com entusiasmo) e aquelas que sabem do que estão falando, que conhecem o assunto sobre o qual discorrem, ou que ao menos acreditam verdadeiramente conhecê-lo. Rubem Fonseca pertence simultaneamente a essas duas categorias.

Seu notório conhecimento sobre os temas a que se dedica fica evidente em um conto, ou quase novela, chamado Romance Negro, onde faz citações de inúmeros escritores habilidosos, entremeados por uma verdadeira aula de história do gênero policial. Somos convidados a um jogo de adivinhação enquanto aprendemos a distinguir as diferenças entre a escola americana e a escola inglesa de tal literatura “obscura”. Um prato cheio para quem gosta de aprender com quem sabe, como eu.

Os especialistas na obra deste escritor irão apontar várias virtudes em seus textos (e até alguns defeitos, dependendo de quem for o crítico). Mas não é por causa do que eles dizem que você deve ler, e sim pelo próprio autor, porque ele é capaz de capturar exatamente o que sentimos. Por exemplo, veja esse trecho do conto O Cobrador, que parece ser o predileto da maioria e que está presente obrigatoriamente em tudo que se diz sobre o Fonseca: “A rua cheia de gente. Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo! Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo.(...) Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol. (...) Estão me devendo xarope, meia, cinema, filé mignon e buceta...” Espero que nunca aconteça para você o dia em que achará que a sociedade lhe deve, e que chegou a hora de cobrar. E espero que não se utilize jamais das mesmas vias que o personagem deste conto.

Agora vou lhe contar como esse autor realmente me arrebatou. Foi numa tarde comum, no meio de uma semana ordinária, nos meus saudosos dias de livreiro, que o leitor Rubem Fonseca entrou na livraria e me pediu que lhe indicasse a seção de poesia, para onde o conduzi. Um tempo depois, já novamente imerso nas atividades da lida cotidiana, senti que ele me tocava calmamente o ombro, com um sorriso de menino, chamando-me a atenção para os livros que levava: poetas ingleses românticos. Foi ali que me dei conta de algo maior, que me revelou a verdadeira razão para se ler aquele escritor...

Você gosta de segredos, Lerme? Então, preste atenção, porque este pouca gente conhece: apesar de o definirem como pai do romance policial no Brasil, na verdade, Rubem Fonseca é um poeta. Um poeta apaixonado. Não sei disso simplesmente pelo sem número de vezes que poetas e poemas se escondem sutilmente em suas obras, como Baudelaire* e Camões**, mas pela forma como desenvolve temas propriamente poéticos, como o fascínio pelos ossos ressaltados das mulheres, que só um poeta consegue admirar e que ele deixa à vista nos contos Mandrake, O corcunda e a Vênus e no já mencionado Romance Negro. O fascínio é um sentimento lindo e raro (muitas vezes confundido com a obsessão, mas sobre isso conversamos em outra ocasião), principalmente neste mundo em que rapidamente nos acostumamos a tudo. Nunca devemos perder a capacidade de nos pasmar!

Foram essas circunstâncias, Lerme, que me levaram a gostar do Rubem Fonseca. Espero que elas sirvam de guia para que você encontre suas próprias razões para também apreciá-lo, e a outros autores que venham a ser seus favoritos.


Comece por este aqui:  64 contos, Rubem Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, mas não deixe também de ler os romances Bufo & Spallanzani e Diário de um Fescenino. 


Notas:

*O Baudelaire escondido:
“(...) vendo-a distanciar-se agile e noble, avec as jambe de statue, até que ela desapareceu no meio da multidão.” (Mandrake. p.309.)


BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Edição biligue. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.


XCIII
A une passante

La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d'une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l'ourlet;

Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair... puis la nuit! - Fugitive beauté
Dont le regard m'a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l'éternité?

Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! jamais peut-être!
Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
O toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais!


XCIII
A uma passante

A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! "nunca" talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!


**O Camões escondido:
“Isso aqui: transforma-se o amador na coisa amada, por virtude de muito imaginar... que mais deseja o corpo alcançar? Que diabo o poeta quer dizer com isso?” (O corcunda e a Vênus de Botticelli. p.720.)

Luís de Camões

Transforma-se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar;
não tenho logo mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semidéia,
que, como o acidente em seu sujeito,
assim co’a alma minha se conforma,

está no pensamento como idéia;
[e] o vivo e puro amor de que sou feito,
como matéria simples busca a forma.