Durante a
pesquisa para minha monografia de graduação, pude atestar que, com toda nossa
permeabilidade à cultura norte-americana, quando o assunto é música preferimos
a brasileira mesmo. Ao contrário do cinema, com suas salas multiplex exibindo
10 blockbusters made in U.S.A. para cada
um ou dois filmes brasileiros (mesmo assim, em horários ingratos, às duas ou
três da tarde), a música produzida no Brasil sempre esteve em 1º lugar, seja em
vendas, seja em execução pública nas rádios. Isso quer dizer que, em terras brasilis, Nelson Gonçalves vende mais que Elvis Presley e
Roberto Carlos mais que os Beatles. Tonico
e Tinoco, a dupla
sertaneja recordista absoluta, com 150 milhões de cópias vendidas, bate Nirvana,
Queen, Elton John, Michael Jackson e Amy Winehouse, juntos. Isso, sim, é goleada!
Portanto, além
do futebol, a Música Popular Brasileira é preferência nacional, o que deixa
mais fácil entender dois fenômenos recentes. O primeiro, do início dos anos
2000, é a onda dos documentários sobre personalidades da nossa música: Vinicius (sobre o poetinha Vinicius de
Moraes), Ninguém Sabe o Duro que Dei
(sobre Wilson Simonal), Lóki (sobre o
mutante atormentado Arnaldo Baptista) e O Homem que Engarrafava Nuvens (sobre o doutor do baião, Humberto Teixeira) são
alguns dentre outras produções que arrastaram milhares de pessoas aos nossos cinemas
para prestigiar um gênero pelo qual nem sempre morrem de amores. Isso sem
falar nos documentários dramatizados - ou cinebiografias - como Cazuza: o tempo não para, 2 filhos de Francisco (sobre Zezé de Camargo e Luciano), Gonzaga de pai para filho (sobre Luiz
Gonzaga e Gonzaguinha) e Somos Tão Jovens
(sobre Renato Russo, da Legião Urbana). Os últimos arrastaram não milhares, mas
milhões de pessoas para prestigiarem seus ídolos na frente da telona.
O segundo
fenômeno mostra-se incipiente e é sempre mais difícil falar sobre algo muito
recente. Entretanto, não precisa ser gênio para perceber que os musicais teatrais
sobre artistas da MPB já são uma febre com potencial de contágio maior que gripe
no inverno. Para assistir Cazuza:
o musical, precisei comprar ingressos com mais de três semanas de
antecedência, mesmo com o espetáculo há um bom tempo em cartaz. O teatro em que
estava sediada a produção (NET Rio, em Copacabana) tem capacidade para 622
pessoas e o espetáculo contava com quatro apresentações semanais (quinta,
sexta, sábado e domingo). Cazuza
agora está com sessões extras no Vivo Rio, que tem capacidade para, pasmem, 5
mil pessoas! É muita coisa
para os padrões de audiência do teatro brasileiro. Com os musicais Milton Nascimento: Nada Será como Antes (que estabelece um fio
narrativo imaginário entre canções do compositor mineiro, sem nenhum diálogo), Elis, A musical e Tim Maia: vale tudo, a mesma coisa – e para esses nem consegui
ingressos, mesmo com tentando com boa antecedência.
Cazuza me surpreendeu de forma extremamente
positiva: antes de assisti-lo, achava que sua vida já havia sido bastante explorada
nos últimos tempos e que um musical seria mais uma variação sobre o mesmo tema.
Mas estava enganado: o musical tem produção de nível Broadway, com grandes
atores e grandes cantores, além das ótimas canções esperadas. O roteiro,
inclusive, corrige injustiças históricas que o filme de 2004, dirigido por
Sandra Werneck e Walter Carvalho, havia cometido ao omitir os nomes de Ney
Matogrosso e Lobão da vida do maior poeta do rock brasileiro nos anos 80. Foi ali que comecei a entender os motivos de
tanto bafafá em torno dos musicais.
Peguei
gosto pelo formato, até então desconhecido por mim e pela maioria dos
brasileiros, e fui para São Paulo assistir Rita
Lee mora ao lado. Em cartaz no Teatro das Artes, o musical sobre a rainha
do rock brasileiro (e já que falamos em números, a quarta maior vendedora de
discos da história, com 55 milhões de cópias) dá um passo adiante de seus
predecessores ao inserir elementos de ficção em sua narrativa biográfica. Na
verdade, o musical parte de uma adaptação da biografia homônima de Henrique Bartsh, cujo lançamento pela Panda Books, em 2006, Rita só autorizaria
se “não fosse careta” porque “biografia é coisa de defunto”, nas palavras da
própria.
O autor não deixou por menos: subverteu os padrões do formato e criou a história paralela de Bárbara Farniente, “vizinha” de Rita desde criança, que observava pela janela a vida daquela ruivinha magrela na casa ao lado. A relação entre as duas protagonistas vai tomando ares parecidos com a dos personagens Mozart e Salieiri no filme Amadeus, de Milos Forman (1984), com a diferença que Rita não toma conhecimento da existência de Bárbara. Inevitável não lembrar do trecho dito por Salieri ao final do filme, clamando e absolvendo toda a mediocridade do mundo.
O musical é bem menos amargo. A personagem fictícia Bárbara sempre se julgou medíocre e invejava todas as conquistas notáveis que Rita Lee teve ao longo da vida, vivendo continuamente à sombra da imagem idealizada de sua vizinha famosa. Porém, quando as duas finalmente se conhecem no camarim de um show, é Rita quem aponta o óbvio: "Ó, você é muito mais louca que eu, hein? Vai brilhar! Vamos trocar de papéis: é a minha vez de ser careta e ficar dentro de casa." Hoje, Rita é uma senhorinha de cabelo vermelho fogo e tênis AllStar, que largou todos os excessos e que gosta de observar a vida das pessoas nas novelas. De certa forma, o musical deixa em aberto a possibilidade da inveja ser mútua: em algum momento, também os famosos anseiam por uma vida tranquila, anônima e familiar.
Alguns dos
principais fatos da vida de Rita Lee estão presentes: a ascensão dos Mutantes,
o casamento com o guitarrista Roberto de Carvalho, a gravidez inesperada, a
prisão por porte ilegal de drogas, a morte da irmã. A atriz Mel Lisboa (que se
lançou anos atrás na minissérie “Presença de Anita”, na Rede Globo) está de
volta e encarna com perfeição o sotaque paulista, os trejeitos, a ironia e todo
o deboche da rainha do rock. Outro destaque inusitado é o ator Fabiano Augusto,
mais conhecido como garoto propaganda das Casas Bahia, no papel de ninguém mais,
ninguém menos que Ney Matogrosso (olha ele, de novo), inclusive emulando bem sua voz de contratenor.
Se o nosso futebol anda meio mal das pernas, os musicais nacionais vão muito bem, obrigado. E vocês podem ter certeza de que ainda vão pipocar muitos deles por aqui, porque se tem uma coisa que não falta nesse Brasilzão adentro é talento pronto para trazer aos nossos palcos a vida e a obra de um monte de craques, sob medida para serem homenageados no teatro mais perto de você.