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quarta-feira, 22 de julho de 2015

Eu, meu avô Zé e o cinema

por Thiago Ortman

Aquela era uma noite quente de meados de novembro em Belo Horizonte. Apesar de estar chovendo, fazia calor no quarto de hospital sem ar condicionado e eu me encontrava deitado no sofá. Na cama ao lado, o vô Zé. Ele havia me dito para dormir um pouco, que estava tudo bem, mas eu não conseguia pregar os olhos. Passava pela minha cabeça a certeza de que aquela seria a última vez que teria meu avô vivo. Enquanto esperava minha tia Cacá retornar com a Tita, outra tia que acabava de chegar de Bruxelas para ficar com meu avô, rememorava todo aquele dia. Por algum motivo o exercício me fazia bem.

Minha tia não estava presente na hora do almoço, então fui eu quem deu a comida a meu avô. Já começava a preparar minha ida a Buenos Aires, onde ficaria por três meses fazendo alguns cursos de cinema, e o vovô Zé, que sempre foi um viajante, gostava de conversar sobre esse assunto. Repetia de hora em hora que eu devia ler Borges, estava seguro que eu iria gostar e me parecia algo certo a se procurar em Buenos Aires: a literatura de Borges. 

A viagem foi o tema principal, mas é claro que assuntamos um pouco sobre cinema - algo que ele entendia e, acima disso, amava. Nunca esquecerei o dia, em uma das oportunidades que estive em BH, em que ele me levou ao camelódromo da cidade para que eu conhecesse um vendedor de DVDs piratas que só trabalhava com clássicos do cinema - tudo na base dos R$5. Como se tivesse descoberto um tesouro, ele me mandava comprar todos os filmes que eu quisesse, que ele pagaria e mais a frente poderíamos trocar entre nós. Eu achava graça naquilo tudo porque, àquela altura, já conseguia todos os filmes que queria baixando na internet, mas para deixá-lo feliz comprei uma dúzia de DVDs.

Vovô Zé
Outro momento bem marcante foi quando ele me deu toda a sua coleção de livros de cinema. Vários de western, gênero que louvava. Acompanhado a essa coleção também veio um caderninho com inúmeros ingressos de cinema que meu bisavô colecionava e uma edição da Revista de Cultura Cinematográfica (RCC), revista crítica de cinema dos anos 60, editada por ele e uns amigos.

Como uma espécie de retribuição, em 2010, houve uma Mostra do John Ford no CCBB-RJ, e eu aproveitei para assistir o maior número de películas possíveis, tendo direito a garantir dois catálogos (pra lá de 400 páginas), o segundo foi enviado por Sedex para a casa de meu avô em BH. 

Nesse mesmo dia do hospital, tivemos tempo de conversar sobre seu pai, meu bisavô, que também havia sido um grande conhecedor de cinema. Naquele momento, me impressionou como meu avô se lembrava de cada detalhe de vida de seu pai com minúcia. Parecia que a violenta doença que se alojava em sua cabeça não afetava suas lembranças mais profundas e significativas. Fiquei extremamente grato de poder desfrutar dessas várias histórias que até aquele dia eu não tinha o menor conhecimento. Guardei-as em minha memória afetiva.

Fui para Buenos Aires e voltamos a nos afastar. Apesar de termos muito em comum, meu avô não era tão presente quanto eu gostaria, e eu também nunca fui um neto dedicado. Muito se deve à distância física entre nós, ele em BH, eu no Rio. Mas também creio que havia uma espécie de preguiça de ambos. No entanto, esse distanciamento possibilitou encontros bem marcantes. Não saberia enumerar a quantidade de vezes que ele me deu broncas homéricas por eu não estar dando resultados satisfatórios na época de escola. Os sermões sempre vinham acompanhados da história sobre quando ele era criança e não tinha dinheiro, por isso recolhia bosta dos bois para ganhar um trocado vendendo-os como esterco. Então, eu deveria dar mais valor a condição de vida que tinha. Na época ficava injuriado, mas agora sei que havia acima de tudo um zelo, por mais que ele não soubesse exatamente como explicitar isso.

Buenos Aires


Houve um dia em Buenos Aires em que eu caminhei bastante, como gosto de fazer, mas dessa vez estava à procura de um lugar que me desse as condições ideais para fazer uma ligação para o meu avô. Atravessei toda a 9 de Julio e resolvi ligar de um bosque próximo à Plaza Francia. Recostado em uma árvore, tive uma breve conversa, porém incrível. Naquele instante, parecia que meu avô estava recuperado. Sua voz estava cheia de vida e ele não parava de me fazer perguntas sobre os meus dias na Argentina.

No entanto, naquele mesmo mês, viajei à Belo Horizonte para fazer a prova da EICTV (Escola de Cinema em Cuba) e me hospedei na casa dele. Nos poucos dias que passei lá, tudo parecia diferente da nossa conversa por telefone. Soa estranho escrever isso, mas já não era meu avô que estava sentado naquela poltrona, praticamente imóvel e monossilábico. Quando balbuciava algo, pouco se entendia, a doença já o havia consumido mental e fisicamente àquela altura. O sentimento que tive no dia do hospital havia se concretizado.

Buenos Aires
Os meses se passaram e em 17 de julho ele ascendeu deste plano. Para nós, fica uma tristeza quase que inevitável neste momento da perda, mas o que tem que permanecer daqui para frente são seus ensinamentos e sua sabedoria.  Aí, sim, creio que sua essência – e memória – será preservada. Não estive presente ao seu enterro em BH, mas minha mãe contou que, entre as pessoas que falaram em homenagem a ele, alguém disse que por meu avô ser filho único considerava seus amigos como irmãos, por isso ele tinha vários no mundo. Fiquei contente em escutar isso e como filho único também saber que faço o mesmo movimento com os amigos que amo.

Dito isso, pensei que deveria finalizar este texto com alguma imagem. Poderia ser com uma das minhas fotos na infância, em que meu avô Zé me segura com um sorriso no rosto, mas prefiro exaltá-lo com uma imagem que sempre vai me fazer lembrar dele, algo que nos une em sua essência: o cinema. Na sequência final de Rastros de Ódio (dirigido por John Ford), John Wayne caminha para o horizonte. E assim vai meu avô Zé.